(Esse texto vai tomar rumos. Bear with me.)
Minhas tatuagens não têm significado algum. As primeiras eu fiz apenas por curiosidade, pedi à tatuadora para desenhar uma flor e uma xÃcara de café. Um ano depois, pedi a ela apenas "flores" e ela me mostrou um desenho e gostei. Anos mais tarde, pós pandemia, resolvi encomendar um escorpião para tatuar no meu peito. Nesse caso, a dor talvez tenha sido o que mais gostei na tatuagem. E aà veio o meu lagarto, que a artista desenhou na hora no meu braço. Um crisântemo, que escolhi numa folha de desenhos e mais alguns flashes só porque gostei mesmo. A última foi um esqueleto. Me deparei com ele nos stories do tatuador e, não sei bem explicar, dei um suspiro. A sensação foi a mesma de ver uma obra de arte num museu e resolver sentar num banco para contemplá-la por horas.
Eu tenho tatuagens por ter uma visão do meu corpo como impermanente. Ele é um empréstimo, um aluguel temporário. Estou habitando neste corpo em constante mudança e, em breve, não estarei mais. Serei espÃrito - ou alma, ou qualquer coisa que exista após o perecimento da materialidade da vida. Assim como todos os outros tipos de obras de arte, a tatuagem também desaparece. Os museus fechados e seguros garantem à s pinturas uma permanência maior neste mundo material, mas eles vão desaparecer igualmente. Meu corpo certamente desaparecerá antes da Monalisa, mas ela também sumirá eventualmente.
É a morte do corpo e das coisas. Stephen Hawking, fÃsico brilhante e pessoa que eu imaginaria não acreditar no espiritual, mandou escrever na própria lápide "here lies what was mortal of...", ou seja, parece que ele acreditava haver um espÃrito, algo que vai além do corpo. Fico pensando para onde vai a humanidade quando a natureza ficar exausta de ser explorada e o apocalipse climático finalmente eliminar nossos corpos deste mundo. Talvez haja um outro planeta para nossos espÃritos. Talvez fiquemos aqui mesmo na terra, mas na dimensão que não enxergamos por enquanto. Não sei.
Nós fazemos as coisas sem pensar na morte. Vamos acumulando coisas objetos trecos e mais trecos que ficarão aqui ainda por muito tempo muito depois da gente. Só depois de mais ou menos quinze mil anos da extinção da humanidade é que os plásticos finalmente sumiriam da face da Terra. Quinze-mil-anos. É muita coisa pra trinta segundos de uns golinhos d'água num copinho. É muita coisa para meia hora de transporte de uma sacola plástica do mercado-carro-lixo da sua casa. E isso só porque estou falando das coisas pequenas. Nada dos milhões de litros d'água só pra criar e matar um boi esquartejado que será servido no seu churrasquinho de domingo. Os milhares de hectares de mata desmatados para plantar soja.
É a morte de tudo. A humanidade vai caminhando para a morte sem perceber. Nossa sociedade capitalista não fala sobre a morte, só valorizamos a vida. Porém, estamos morrendo o tempo todo. Morrendo de trabalhar, morrendo de comer, morrendo de cansaço.
Todas as coisas que fazemos são paliativas dentro de um sistema que nos mata aos pouquinhos, lentamente, todos os dias, a cada minuto. Terapia? Skincare (nem me fale dessa merda, odeio)? Massagem? Yoga? Adianta muito pouco se não conseguimos dormir direito, comer direito, fazer exercÃcio, conversar com pessoas fora do ambiente de trabalho, nos divertir direito.
Nosso senso crÃtico também está morrendo. As redes dão uma falsa sensação de que temos opiniões sobre as coisas, mas o máximo que fazemos é repostar qualquer coisa com que concordamos e comentar qualquer coisa de que discordamos. Os algoritmos estão matando a diversidade. Só vemos as mesmas coisas, os mesmos vÃdeos de 3 segundos. Nossa concentração já morreu há muito tempo. Ninguém consegue mais passar 20 minutos fazendo qualquer coisa sem olhar para o celular.
Precisamos falar sobre a morte sim. Porque estão nos matando e estamos morrendo o tempo todo. E tudo isso achando que estamos vivendo. Que vida é essa? A gente só tem coisas e mais coisas, possui, pronomes possessivos importam mais do que os outros pronomes e acha que isso é vida. Perdemos o "eu" o "outro", matamos a natureza, não sabemos mais quem somos, só sabemos contar as coisas que possuÃmos. Quem eu sou nessa merda toda? Uma pessoa morrendo. Sinto que consigo falar mais da morte do que da vida.
Dia desses eu vi um homem morto numa calçada. Não consegui fazer nada. Passei por ele no meu carro, em choque. Um corpo vestido com roupas sujas, sandálias sujas. Um pé pendurado no meio-fio. Ninguém por perto, só carros e mais carros num engarrafamento. Não havia mais o que fazer. Quem quer que seja aquela pessoa, espero que seu espÃrito esteja em algum lugar melhor.
Espero que, após a morte do corpo, nós consigamos descobrir quem somos. Que a carruagem da morte possa nos levar gentilmente algum dia. Porque esse mundo é duro, a vida é dura, é difÃcil. Que a morte seja simples.
1 Comentários
Eu acredito que exista algo depois da morte, sim, e espero sinceramente que seja algo bom. A gente já sofre tanto aqui, né?
ResponderExcluirNão sei se é só impressão minha, mas parece que todo mundo anda com esse sentimento de desesperança, como se estivesse apenas esperando a natureza se livrar da gente.
Seja como for, continue tentando fazer o bem e ser uma centelha de luz nesse caos.
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