Chorei
Comecei a chorar quando um jato descontrolado do chuveiro começou a pingar diretamente no meu rosto como se me provocasse. Eu não queria molhar o cabelo porque estava limpo, mas os pingos loucos insistiam em molhar tudo. Resolvi lavar o cabelo. Continuei chorando porque, logo antes de entrar no banho, quando sentei nua no vaso sanitário, senti um fedor azedo. Olhei para a minha sandália e vi que tinha pisado no cocô de algum dos meus cachorros enquanto caminhava no jardim. O chão do banheiro estava todo marcado de marrom. Abri a porta do banheiro, joguei a sandália virada para cima no chão do quarto, percebi que a janela estava aberta e eu estava nua. Não sei se deu tempo do jardineiro do vizinho me ver, mas agora é tarde. Fechei a porta e limpei o cocô do chão. Por isso, senti que o jato descontrolado do chuveiro estava me atacando pessoalmente como quem dissesse seu dia pode piorar bastante, toma, toma, vai se atrasar agora. Trump, o condenado, havia sido eleito há poucas horas para a presidência daquele país terrível e eu também chorei por isso. Tudo pode piorar. Chorei pela minha avó falecida recentemente. Chorei pelo vácuo de conversas que estão prestes a morrer. Chorei pelas minhas árvores podadas sem o meu consentimento. Chorei pelas outras árvores podadas por motivos ridículos na minha rua que agora parece um deserto. Chorei pelo trânsito de duas horas que preciso pegar para ir ao trabalho todos os dias. Chorei pelo show de Travis cujos ingressos eu comprei e não pude ir. Chorei pelas atividades planejadas que deram certo. Chorei pelas atividades planejadas que deram errado. Chorei por ser repetitiva. Chorei por querer ser diferente. Chorei pelo cansaço acumulado deste ano inteiro. Alguns soluços e um grunhido fino foram produzidos pela minha garganta. Me enxuguei, troquei de roupa, passei desodorante, botei meu alargador, meu anel. Saí do banheiro nas pontas dos pés desviando dos carimbos de bosta até encontrar outra sandália e andei pela casa desviando da sujeira. Peguei o mop e refiz meu caminho de Coelho da Páscoa só que em vez de chocolate eram pegadas de cocô e fui limpando tudo. Almocei sanduíche com biscoito porque não daria mais tempo de preparar nada mais elaborado. O restante do dia transcorreu tranquilamente, quem diria, o jato estava errado.
4 Comentários
um abraço bem apertado de mim pra você, querida <3
ResponderExcluirObrigada, amigo <3
ExcluirBem legal essa estória. As vezes momentos únicos e simples fazem toda a diferença.
ResponderExcluirBoa semana!
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Até mais, Emerson Garcia
e sobrevivemos (mesmo tendo que fazer uma pausa pra dar uma choradinha). um abraço, uaba!
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