Vovó Isa - Parte 1
Eu sabia que esse momento chegaria. Tive uma vaga intuição lendo o horóscopo de domingo para a segunda-feira dizendo que pessoas de Touro e Libra enfrentariam “acontecimentos significativos”. Minha avó era de touro e eu tenho ascendente em libra. Comecei minha manhã do primeiro dia da semana normalmente, preparando aulas, enviando mensagens, recebendo carinho dos meus cachorros e do meu consagrado. Tomei banho e, ao me vestir, vi uma mensagem da minha prima “meus sentimentos”. Na hora eu sabia que era minha avó. Ela já estava havia uns cinco anos vivendo num corpo que não a servia de muita coisa. Sem andar e perdendo aos poucos as forças dos braços que pintaram tantos quadros bonitos. Os dedos finos e longos que tocavam piano e também me ajudavam na tarefa de casa, apontando as palavras nos livros e cadernos.
Nesse processo de perda da presença física de alguém querido, eu e minha família acabamos sofrendo algumas violências que as pessoas fazem por: primeiro, despreparo para lidar com a dor do outro; segundo, por insensibilidade; terceiro, excesso de religiosidade; por último, o pós-capitalismo que fica muito mais cruel do que o normal. Vou relatar aqui como tudo aconteceu e convido você a encaixar tudo o que fizeram com a gente nos tipos de violências que mencionei. Eu gostaria de acreditar que nada disso tenha sido feito de propósito, mas eu me senti muito mal e nossa sociedade não tem o hábito de falar sobre o momento de luto, sobre suas burocracias, muito menos dar apoio psicológico a quem fica para cuidar de tudo.
Minha avó faleceu dormindo às 10h da manhã e já tinha plano funerário, ou seja, todas as burocracias deveriam ter acontecido de forma tranquila. Primeiro, os médicos só apareceram para atestar o óbito às 15h. A casa funerária mandou apenas uma pessoa para transportar o corpo e cuidar de toda a documentação. Essa pessoa só chegou na casa dela às 19h e disse que seria necessário fazer um boletim de ocorrência, pois minha avó havia falecido em casa - não foi necessário, o atestado dos médicos já continha a informação necessária. O homem não conseguiu carregar o corpo sozinho e o meu consagrado precisou ajudar. No elevador, esse homem tentou vender uma coroa de flores a ele, "na minha mão é mais barato", disse o homem.
Enquanto isso, meu pai tentava organizar a cremação que ficaria a cargo de outra casa funerária e uma mulher de tom de voz bastante desagradável tratava com ele via whatsapp. Minha avó não era mãe biológica da minha mãe, seu parentesco real era de tia-avó, ou seja, legalmente, a última parente viva dela é a minha avó real, sua sobrinha de 91 anos. E isso gerou um pra lá e pra cá com atendentes altamente despreparadas para compreender que a documentação que minha mãe possuía seria suficiente para ela mesma autorizar a cremação. Mesmo assim, após uma manhã de velório, o corpo da minha avó foi levado à tal casa funerária para a cerimônia de cremação e eles exigiram a presença da minha avó biológica de 91 anos que não consegue segurar uma caneta. Inclusive, minha família não queria contar a ela da morte da minha avó, mas os familiares, quando a viram, foram prestar as condolências e eu, meu pai, meu irmão correndo para avisar que ela não sabia.
Iniciaram a cerimônia de cremação sem a minha mãe, presa na administração tentando assinar o documento. O próprio padre ficou indignado, mas foi tão pressionado pela organizadora da casa funerária que começou a cerimônia. Para ela, era apenas a quinta cremação do dia. Para nós, era nossa avó querida que partiu e merecia ter os rituais da religião que ela seguiu a vida toda, as palavras consoladoras do padre e os pensamentos da família reunida. E a minha outra avó ainda precisou ficar do lado de fora, no calor, com suas cuidadoras, para ser poupada de acompanhar uma cerimônia que sua mente já não seria capaz de compreender.
Cheguei em casa naquele dia às 21h, pois, como se não bastasse, houve um acidente no caminho e eu fiquei parada no carro por mais de meia hora presa num engarrafamento enorme. Eu realmente não queria que aquele dia ficasse marcado por esses eventos terríveis. Queria ter prestado as últimas homenagens à avó que ajudou a me criar, me passou o gosto pelas línguas estrangeiras, incentivou meus estudos e viveu uma vida longa fazendo o que podia por sua família do coração. Nosso parentesco biológico pode ter sido distante, mas eu me considero extremamente abençoada por ter tido três avós, sendo a minha vovó Isa aquela com a qual eu mais me identificava.
Eu vou falar mais sobre ela em outro post, pois sua história de vida é bem peculiar e eu eternamente sentirei sua presença em mim. Entretanto, achei importante escrever esse post porque a morte e o luto são assuntos pouco tratados na nossa sociedade, além de serem permeados por religiosidade, mística, sofrimento e silêncio - e, evidentemente e infelizmente, pelo capitalismo.
3 Comentários
sinto muito por ter passado por tudo isso, uaba querida. meus pêsames e vou adorar ler mais sobre sua avó <3
ResponderExcluirOi, Uaba, meus sentimentos pela perda da sua avó. Espero que vocês e ela encontrem conforto ❤️
ResponderExcluirNunca perdi nenhum familiar próximo e realmente não sei o que é passar pelo luto tendo que equilibrar as burocracias junto. A gente não está preparado pra isso e é horrível, porque como você falou, quem trabalha com isso vê muito como trabalho e muito pouco com os olhos de quem está abalado.
Fale mais da sua avó aqui, sim. Achei linda a tela que ela pintou. Um abraço! 🫂
Meus sentimentos. Que bom que guarda bons e belos momentos com sua avó. A morte e o luto fazem parte da vida.
ResponderExcluirBoa semana!
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Até mais, Emerson Garcia
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